Escrevi sobre sucessos sutis devido ao último que me marcou: Heaven’s Nest. Foi realizando essa breve animação 2D que reaprendi tudo que sabia sobre processos criativos. Faço aqui um estudo de caso.
O Contexto
Era dezembro e me sentia exausto.
Havia passado alguns meses explorando as possibilidades para o futuro da animação – um campo muito, mas muito amplo.
Eu estava precisando de férias.
Então me esbarrei com o 11 Second Club do mês. Ao ouvir aquele trecho de áudio, senti em mim uma resposta emocional muito forte, além do racional. Um impulso físico de criação!
O ano havia sido bastante caótico, com muita turbulência que eu nunca antes havia vivido. Poder criar uma animação a partir dessa resposta emocional que senti foi como uma chance de catalisar a mistura de tudo que eu estava vivendo até ali: as explorações com animação e novas tecnologias, o estudo do corpo através da mímica, e minhas emoções do momento!
O Processo
Nesse mesmo dia procurei externalizar o que senti com o áudio, deixando o corpo explorar o que poderia virar cena. Não me preocupei com nada, apenas deixei uma câmera gravando tudo. O gesto do voo logo apareceu, e identifiquei o personagem como um pássaro que perdeu os filhotes.
Assistindo os vídeos, fui encontrando a energia da cena, e também identificando algumas poses que considerei importantes, que comunicavam.

Dali, fiz esboços grosseiros, para já começar a visualizar como isso poderia ser representado. Repare o alto nível de destreza dos desenhos.

Não havia, nesse momento, cuidado algum com a definição do personagem – pássaro, humano, ou a mistura de ambos. Estive mais preocupado com a energia, a intenção, da movimentação.
Logo reparei que eu estava demorando muito tentando progredir diretamente no 2D. Então recorri à minha familiaridade com o 3D e animei uma esfera¹ para visualizar o tempo e fluxo da animação:
Aí passei a explorar melhor como seria o pássaro. Com algumas referências, cheguei nisso:

Minha ideia seria usar esse projeto para testar um estilo de animação aquarelado em papel, atrás de maior delicadeza e leveza, como já havia feito em uma carta ilustrada para uma pessoa muito especial, que gostaria de honrar aqui.
E também gostava da ideia de trabalhar com papel e tinta, e não telas e teclas.
Encerrei o que tinha de trabalhos pendentes e me preparei para mergulhar nesse projeto, mas uma infecção de garganta me derrubou de cama. Quando melhorei, senti a necessidade de desconectar um pouco do mundo, e viajei para o litoral.
Passei aqueles dias estudando pássaros – tanto por vídeo como ao vivo, incluindo a feliz oportunidade de assistir um pica-pau e um tucano bem de perto. Aproveitei pra explorar um pouco o estilo aquarelado também. Me alimentei também de referências, em especial o clássico A Espada Era a Lei (a coruja Archimedes até hoje é um de meus personagens favoritos).
Voltei para casa com apenas 8 dias para fazer tudo. No primeiro, fui animar apenas o corpo do pássaro, mas reparei que perdia o foco com facilidade – explorando o cenário de fundo, as cores, traços etc.
Percebi que com a pressa que eu tinha, eu não tinha tempo de NÃO planejar.
Então fiz um cronograma diário, que ficou assim:
- 25dez - melhorar corpo e pés; desenhar cabeça on 4s;
- 26dez - asas on 4s; e o que mais der;
- 27dez - fazer o bico cantando (“beaksync”);
- 28dez - traçar tudo on 2s;
- 29dez - pintura - máx. 6minutos por desenho
- 30dez - finalizar pintura;
- 31dez - exportar vídeo e enviar
Algumas tarefas se mostraram mais difíceis do que eu previa (por ex. definir a movimentação das asas), e pra completar, desenvolvi uma infecção de ouvido, que colocou mais de um dia de atraso no cronograma.
Mas reparei que o progresso estava sendo feito e em nenhum dia trabalhei a ponto de me esgotar: tirei intervalos, assisti filmes, me alimentei e dormi bem.
No dia 30, entretanto, a animação já estava bastante avançada, mas eu imaginei que não teria tempo para a pintura. Na empolgação de ver o produto final, não tive sono e virei a noite desenhando. Pela manhã, a animação sem pintura estava finalizada.
Ao longo do dia, reparei que havia sido sensato em separar um dia inteiro para a exportação: lidar com tantos layers, passes, e uma resolução exageradamente alta foi lento e trabalhoso.
Às 17h estava tudo pronto. Eu estava satisfeito, mas não por completo. O projeto previa pintura. A ideia da aquarela inclusive era eliminar contornos. Então separei o que me restava de energia e comecei a pintar. Mas com 183 quadros de animação, cada parte do pássaro que eu passava pintando levava ao redor de 40 minutos.
Já passava das 23h quando enviei a versão final e saí de casa quase atrasado para uma festa de ano novo. E estava completamente satisfeito.
O Resultado
A recepção dessa cena no 11 Second Club não foi muito boa, e mais de uma pessoa questionou se seria rotoscopia (fico pensando qual seria o material original que eu teria copiado; ainda estou pra ver pássaros tão dramáticos). Além disso, depois de me afastar uns dias da cena, comecei a achar que a animação apenas com os contornos tinha mais apelo do que a versão em cores (o que gerou boas conversas com colegas animadores).
Mas de alguma maneira eu tive muito orgulho de ter feito essa cena. Por mais que tenha tido bastante tempo de pré-produção, considerei uma conquista ter feito tudo em 8 dias, sem experiência com 2D, com duas doenças no processo.
Foi algo que me gerou uma satisfação próxima à que eu tive ao completar o Blackout, meu primeiro curta metragem, que antecedeu meus estudos em animação, e foi feito com uma prazerosa disciplina que poucas vezes reproduzi na vida
Foi quando pensei..
Por que projetos que fiz simplesmente “indo e fazendo” aconteciam, enquanto projetos super calculados, estudados e pretensiosos não saiam do papel?
Produzi menos conteúdo nos anos seguintes à graduação em animação no Animation Mentor do que nos anteriores.
Penso que a partir do ponto em que passei a me educar, subi meus níveis de exigência. Querendo dizer: eu precisava estar pronto.
Os projetos que eu vislumbrava pareciam grandiosos, e pediam vasta experiência. Eu precisaria primeiro me desenvolver até estar bom o bastante. E uma hora me sentiria confortável para mergulhar. Será?
Pois como se costuma dizer no empreendedorismo: se você está se sentindo confortável, você demorou demais.
Não me sentia pronto para fazer o Heaven’s Nest. E não acho que ele seja uma grande conquista na animação 2D. Tampouco o Blackout, como curta-metragem. Ambos são repletos de falhas e áreas a melhorar.
Mas ambos saíram da gaveta, e foram conquistas para mim.
Por isso hoje me preocupo mais em alcançar e completar projetos “menores”, talvez menos pretensiosos.
Mas que carreguem essa urgência, que se manifestem como algo que não posso NÃO FAZER.
E isso não é sonhar mais baixo – nem um pouco.
Mas sim ter a percepção de que só é possível escalar alto se apoiando em pequenas conquistas sucessivas.
E de certa forma, isso significa aproveitar mais a escalada.
Encarando o desafio único de cada passada – e celebrando sua conquista.
¹ Escreverei mais sobre essa forma de visualizar ou refinar animações num próximo post.